Armindo Vaz, OCD
Continuamos à procura do sentido original do Cântico dos Cânticos. É o livro da Bíblia que privilegia o ressoar das palavras e o palpitar do amor humano. Palavras incandescentes são as primeiras: “Que ele me beije com beijos da sua boca!” (1,2). Atiram logo com o leitor para o fogo do amor – “fogo que arde sem se ver” (diria Camões) –, onde arderá até ao fim do poema: “Forte como a morte é o amor… / Arder de fogo é o seu arder, / é chama divina” (8,6). Se o leitor tem memória clássica, ouvirá o eco das palavras abrasadas de Catulo († em Roma, 54 a.C.) à sua amada (Elegias, 5): “Dá-me mil beijos, depois cem, depois outros mil, depois outra vez cem, depois ainda outros mil, depois cem”. A intensidade do beijo inaugural no Cântico exprime em profundidade o humano enquanto ‘ser para o outro’; é o átimo de eternidade que inaugura a fusão dos amantes numa só pessoa.
Mesmo que não entenda inteiramente algumas expressões, o leitor do Cântico vai ficando irresistivelmente atraído e extasiado também pela doçura penetrante: “o seu fruto [da amada] é doce na minha boca” (2,2). O do Cântico é o amor cândido, belo, emocionado e constante, entre um homem e uma mulher enamorados, que contemplam desarmados a beleza um do outro, se olham e se descobrem, se dizem e se valorizam mutuamente, se procuram e se encontram com gozo imperturbado, numa estreita teia de relações, no fascínio e na dádiva desinteressada de um ao outro, inebriados com o mesmo néctar, numa catadupa de sentimentos, no idílio intensificado pelo arroubamento de ambos face ao encanto da natureza virgem dos campos: “Fala o meu amado e diz-me: / Levanta-te, anda, minha amada, minha bela, vem daí…; / despontam as flores na terra, / chegou o tempo das canções / e a voz da rola já se ouve na nossa terra; / a figueira faz brotar os seus figos / e as vinhas floridas exalam perfume” (2,10-13). Ela corresponde: “Anda, meu amado, /corramos para o campo, / passemos a noite sob os cedros, / madruguemos pelos vinhedos… / Ali te darei as minhas carícias” (7,12-13). Os dois amantes cantam o amor de um pelo outro. Cada um chama “amor” ao outro: “Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém…, não desperteis nem perturbeis o amor, enquanto ele não quiser” (2,7; 3,5; 8,4); “como és bela, como és desejável, amor, filha de delícias! tu és bela, minha amada…, esplêndida como Jerusalém” (7,7 e 6,4). A amada da sua alma enche de sentido a sua vida; e isso faz com que o amado a veja como bela, numa visão que é simultaneamente consequência e causa do amor.
Portanto, a atmosfera que envolve o Cântico dos Cânticos é a do amor humano, do amor-agapè que completa e eleva o amor-eros, ambos bem presentes: é a do amor-agapè que se torna descoberta do outro, superando a fascinação pela grande promessa da felicidade, que poderia prevalecer no amor-eros: “Que formoso és, meu amado, / És pura delícia!” (1,15-16); “como são doces as tuas carícias, minha irmã e noiva!” (4,10). Assemelha-se ao “Amor [Eros, deus personificado] que deslassa/afrouxa os membros [lysimèles]; / Amor doce e amargo, / fera subtil e invencível” – como o canta a poetisa grega Safo (séc. VII-VI a.C., em Amor doce e amargo, 5-7). É o amor cantado igualmente pelo poeta grego Hesíodo (séc. VIII-VII a.C.), ao contar miticamente “aquilo que foi no princípio” (Teogonia, 114-122): “Primeiro foi Amor [Eros], o mais belo entre os deuses imortais, aquele que deslassa os membros [lysimèles] e que no peito de todos os deuses e de todos os homens doma a inteligência/coração e o sábio querer”. É o amor avassalador e palpitante, que baralha a razão, agita o ânimo com alegrias e dores pungentes e toca de leve o absoluto: «muito padece quem ama» – reza o cante alentejano.
A linguagem do Cântico tem uma dinâmica imparável. O interior da sua densa simbólica está tecido com um fio invisível, que torna mais vivos todos os símbolos, dando unidade orgânica ao(s) poema(s). A descoberta do amado e do seu esplendor só acontece depois de uma busca ansiosa. A presença é saboreada em pleno só depois do amargo da ausência. A transbordante felicidade segue à angústia do vazio. A procura temporária é que torna fascinante a união que canta a vida num encontro surpreendente. O temor de momentos purifica a subsequente comunhão amorosa. Cada cena do poema é uma variação na procura da satisfação plena do amor. Os dois enamorados, que se movem e mantêm ao mesmo nível, são vida humana à procura do amor em moto contínuo, são vida enquanto busca e encontro. Ao encontrarem-se um ao outro, descobre cada um o mais verdadeiro da sua identidade, que também consiste em ser para o outro. O que afinal de contas os captura é serem conduzidos para campos desconhecidos, de fecundidade e fertilidade, que vão ter a caminhos novos de beleza e sabor: “Roubaste-me o coração, minha irmã e minha noiva, / roubaste-me o coração com um dos teus olhares” (4,9); “melhores do que o vinho são os teus seios [ou: …as tuas carícias / os teus amores]” (1,2; 4,10). [continuará]