Armindo Vaz, OCD

Continuamos a pensar no Cântico dos Cânticos. Dizíamos que a sua interpretação alegórica, com pequenas variantes, é a leitura recebida e transmitida para a sociedade, aceite até hoje:

“É belíssimo o Cântico dos Cânticos, onde se descreve este Deus que está atrás do muro, que olha da janela, que espreita através da grade, este Deus tão vivo, criador, fantasioso, entusiasta da vida. Do outro lado, este homem que Deus chama pomba, amigo, que no entanto está entre as fendas da rocha, que não faz ver o seu rosto e que se envergonha de se mostrar e fazer ouvir a sua voz. Deus que dança e o homem que se esconde”: Luigi Verdi, in La realtà sa di pane (ed. Romena; tradução de Rui Martins; publicado em 02.03.2020).

Ainda se encontra na Bíblia do «Pontifício Instituto Bíblico de Roma», editada também no Brasil pelas Paulinas em 1967: “Foi tradição constante e unânime da Sinagoga judaica e da Igreja cristã que no Cântico, sob a alegoria de amores profanos, se celebra o amor mútuo entre Deus e o seu povo, entre Deus e o fiel piedoso. Só o racionalismo moderno tentou despojá-lo dessa auréola divina, reduzindo-o a um eco de simples amores profanos… Frequente é no Antigo Testamento o uso de representar a união de afectos entre Deus e o seu povo no vínculo conjugal… Por conseguinte, a interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos não é arbitrária: funda-se nos usos dos Livros Sagrados” (p. 795).

Esta tendência generalizada para a interpretação alegórica está representada especialmente nalguns rabinos, em Orígenes, Guillaume de Saint Thierry, S. Bernardo de Claraval e S. Tomás de Aquino (†1274). Encontra-se nos carmelitas S. João da Cruz (no seu Cântico espiritual) e S. Teresa de Jesus.

No breve comentário que Teresa fez ao poema bíblico só glosou alguns versículos, com grande espontaneidade, a partir da sua vida espiritual e mística. Mas preocupou-se com o que hoje chamamos sentido espiritual do texto:

Tomadas só à letra, estas palavras [«que ele me beije com beijos da sua boca»: 1º versículo do Cântico] causariam verdadeiro temor, se estivesse em si quem as diz; mas a quem o vosso amor, Senhor, fez sair fora de si, bem lhe perdoareis que diga isso e mais ainda (Conceitos do amor de Deus, 1,12).

Teria gostado de compreender a sua mensagem original, mas no seu tempo não havia meios para isso. No início do comentário “roga aos letrados que me declarem aquilo que o Espírito Santo quer dizer e o verdadeiro sentido [das palavras «que ele me beije com beijos da sua boca»]” (Conceitos do amor de Deus, 1,8).

Ora, esta intenção de Teresa de Ávila coincide com a procura e descoberta do sentido original do texto bíblico, considerada nos nossos dias “a tarefa suprema” da interpretação da Bíblia: “o exegeta católico aplique-se à tarefa suprema de todas as que se lhe impõem: indagar e expor o verdadeiro sentido dos sagrados Livros” (PIO XII, Encíclica Divino afflante Spiritu: EB 550). O Cântico dos Cânticos é poética, sim. Mas pede interpretação, para o leitor não cair no atoleiro do fundamentalismo e em interpretações subjectivistas, ditadas pela fantasia pessoal e pela especulação intelectual ou devocional. De resto, é pela mensagem mais autêntica possível que passa a Palavra de Deus. É por aí que podemos fazer da linguagem do Cântico uma interpretação mais consentânea com ele do que a alegórica. Qual é então o seu verdadeiro sentido? Que queria dizer, primeiro, aos leitores imediatos, para depois compreendermos melhor o que quer dizer à nossa vida hoje?

Na leitura mais óbvia e atendendo aos sentimentos amorosos que suscita, a linguagem do Cântico soa como um tocante poema de amor, de rara beleza literária, expressão vibrante de intensas emoções entre dois enamorados. Já o exegeta dominicano da Universidade de Coimbra, Frei Luís de Sotomaior, tinha reparado nisso em 1599, ao interpretar o Cântico dos Cânticos como uma imensa alegoria de Cristo Esposo:

À primeira vista, parece ser todo um libreto de amor e profano mais que teológico e divino; nem parece soar ou saber a nada de divino: antes, não parece soar ou saber a outra coisa que não sejam meras carícias e delícias amorosas e profanas (Cantici canticorum interpretatio, 50, col. 1 A-B).

De facto, no século I d.C. o Cântico ainda se cantava nas tabernas, para escândalo dos rabinos, que o liam como sagrado. Claramente, não tem linguagem religiosa nem encerra a mínima religiosidade. O nome de Deus (Yahvé) aparece uma vez (em 8,6), mas é para significar que “o amor é forte…, é como uma chama de Yah”, ou seja, é poderoso como um relâmpago (porque parecia vir do céu: veja Job 1,16). A poesia do Cântico mantém-se sempre ao nível do jovem amor humano entre um amado e uma amada, amplexo adolescente, canto de inocentes descobertas, convite a um banquete de gratas sensações. É de veras um cântico ardente, sinuoso, denso de mistério, um ápice da poesia e do amor de todos os tempos, um momento poético culminante, onde o amor é instituído em valor por si mesmo e não conhece o pecado nem a vergonha ou o embaraço, nem precisa de pedir desculpa para ser aceite, nem tem de ser redimido ou salvo. É a celebração da alegria de viver e de amar, em que está ausente qualquer sentido de culpabilidade.  [continuará]