Armindo Vaz, OCD

Amor meu, que és tu? Onde estás?

Iniciamos esta reflexão com um convite à interioridade. Interessa saber o que é o amor? É definível? Ou a tentativa de defini-lo acaba por adulterá-lo? De facto, definir é, em latim, pôr «finisconfim, extrema, fronteira»: é a percepção nítida, bem delimitada e precisa de uma coisa. Ora, o amor, por implicar o coração e os sentimentos mais do que a razão e o pensamento, não admite barreiras nem balizas. Vai sempre mais longe, além do calculado, esperado ou pressuposto. E quando o pensamos, sempre deixamos escapar algum perfume da sua essência. Nele cabem impulsos humanos desde a paixão à compaixão, do afecto ao enamoramento, da caridade à bondade, da ternura à misericórdia e à magnanimidade e ainda mais. O amor tanto é um dos mais frequentes temas de conversa como é opaco às ciências. Aliás, sublimado e no estado mais puro, é terreno sagrado. O que se pode é reflectir sobre ele, ver o que amantes e amados disseram dele, fazendo com ele história humana e divina. E o que mais interessa é fazer a experiência dele, vivê-lo…, sem esquecer que é destino mas também viagem; é viagem com destino. Não nasce feito e perfeito. Vai-se fazendo, provavelmente sem alcançar a perfeição ou sem encontrar a alma gémea, a «outra metade» (como a chamaria Platão). O amor ao amado tanto nasce como se aprende. É conquista contínua.

Então, é difícil definir o amor. Há nisto consenso alargado. Uma coisa, porém, não é difícil: perceber que a realidade humana polifacetada que prende a atenção e emerge na leitura do livro bíblico Cântico dos Cânticos é o amor, o amor na sua expressão mais pura e elevada, no desabrochar e no crescer, nas variegadas eflorescências, nos coloridos sentimentos que envolve, nas manifestações cruzadas, nas tensões conturbadas de um amado e de uma amada – noivo ou noiva, esposo ou esposa – que se procuram mutuamente no corpo e no ser total de um e da outra. Isso é fácil. Surge, ainda assim, um problema. Qual é a melhor leitura desse poema lírico incorporado nas Escrituras canónicas de judeus e cristãos? Como lê-lo e entendê-lo?

Esta questão sempre esteve subjacente na longa história da sua interpretação ao longo de séculos. Volta agora à ordem do dia, quando em Itália o actor Roberto Benigni – director e protagonista do filme de 1997 La vita è bella (que obteve 3 Óscares e mais prémios) – fez do Cântico dos Cânticos no muito frequentado Festival da Canção de Sanremo, a 8.2.2020, uma leitura ‘quente’ que suscitou em toda a sociedade italiana (e não só) reacções incendiadas e incendiárias. Nos dias seguintes ao festival, nas praças, no cabeleireiro, no café, no restaurante, no emprego, o incontornável tema de conversa era o Cântico dos Cânticos. Sob inspiração de um golpe de génio, o actor levou para as ruas o Cântico que não se lia nas igrejas. Fintou o público do festival, lendo durante 40 minutos o melhor do Cântico e a interpretação que dele fazia: “Pensei: não posso ir a Sanremo e apresentar uma canção qualquer; apresentarei a mais bela. E qual é o presente mais belo que posso oferecer ao público de Sanremo? – A canção mais bela do mundo. Encontrei-a na Bíblia. É o Cântico dos Cânticos, a canção mais bonita que tenha sido escrita na história da humanidade. Uma canção de amor, o cume da poesia de todos os tempos. É como se apresentasse uma peça da Capela Sistina ou o último patamar da torre de Pisa”.

E leu os versículos mais ‘interessantes’, com uma versão discutível, sim, apimentada, desinibida, de algumas palavras e expressões relacionadas com o corpo dos amantes. Mas num ponto tem razão. No Cântico, o amor físico não está espiritualizado. É ele que está em primeiro plano, despido de preconceitos.

Todavia, a história da sua leitura proporcionou interpretações bem diferentes dessa. A alegórica, adoptada pela primeira edição da Bíblia de Jerusalém num volume só (1956), lia no Cântico alusões à Terra Santa e ao templo de Jerusalém. Quando o amado diz à amada que “os teus seios são dois filhotes gémeos de gazela” (4,5 e 7,4), estaria a referir-se aos dois montes da Samaria, Garizim e Ebal, que realmente estão um junto ao outro; e, quando a amada diz do corpo do amado que “as suas pernas são pilares de alabastro assentes em bases de ouro fino” (5,15), estaria a referir-se às colunas do templo de Jerusalém. Hoje essa interpretação faz sorrir, sinal de que os estudos sobre a Bíblia evoluíram.

As leituras alegóricas mais frequentes apontam para um sentido místico ou religioso. Encontram-se na grande tradição judeo-cristã pós-bíblica (Sinagoga, Igreja e místicos cristãos), que viu no amor do amado para com a amada a melhor expressão do relacionamento de Deus com o seu povo eleito, fiel (Israel, Jerusalém), ou do relacionamento de Jesus (considerado Esposo) com a Igreja ou com a alma cristã (considerada esposa). Não será possível uma interpretação mais em harmonia com o género e o teor do texto? Veremos nas próximas meditações.

[continuará]