Armindo Vaz, OCD
Sempre houve ao longo de milénios grande mobilidade na história da humanidade. Mas nunca tanta como hoje (friamente esbatida pela pandemia). Nesse fenómeno social está entretecido o das peregrinações. Os sociólogos registam sinais de expansão dessa movimentação religiosa, constatando que, em grupo ou sós, são cada vez mais os que se põem a caminho, atraídos porventura para uma experiência emotiva ou de ‘desporto’ religioso radical.
Mas a peregrinação não é fenómeno de agora: pelo menos desde os mais remotos tempos bíblicos, foi sendo e está carregada de sentido humano e espiritual por uma longa tradição. Os que integravam o povo bíblico faziam por visitar o santuário de Jerusalém, visto pela fé como símbolo da presença de Deus em Israel: “Os seus pais [de Jesus] costumavam ir todos os anos a Jerusalém à festa da Páscoa. E quando chegou à idade de doze anos, tendo eles subido [verbo técnico para referir a peregrinação inteira à cidade santa, podendo-se traduzir: estando eles em peregrinação], segundo o costume da festa…”. Jesus começou cedo o exercício físico da peregrinação, aprendiz de sucessivas peregrinações ao coração humano. Depois fez outra, igualmente simbólica, de 40 dias no deserto. Dela teve origem a da quaresma (←quadragesima dies).
O sentido da peregrinação reside na sua capacidade de comunicar, entre o símbolo e a metáfora. De facto, ela é símbolo: tem capacidade intrínseca de remeter para a concepção do homem viandante, para a realidade da existência vivida ou por viver, que se realiza enquanto caminhada ao longo de peripécias inumeráveis, iniciada na imanência e tendente para a transcendência. E também pode ser considerada metáfora: a vida é como uma peregrinação que dá unidade à diversidade de acontecimentos e de experiências tidas. Concretiza-se entre acolhimentos e rejeições, ditas e desditas, festas, epidemias e pandemias. Vista como metáfora da vida humana, esta aparece como narrativa com sentido. Enquanto símbolo da nossa existência, interpreta-nos a fundo, caracterizando também a quaresma litúrgica enquanto caminhada libertadora feita pelo espírito.
O peregrino que sai do próprio porto de abrigo, expondo-se a perigos e enfrentando medos e obstáculos entre estranhos ou estrangeiros, significa as dificuldades da vida e exorciza-as. Gente de várias culturas, idades e procedências, marcada por situações humanas de dor, trabalho e desafios, de rotina e novidade, converge para um ponto comum, ao encontro dos outros, para partilhar pedaços de vida e procurar na peregrinação algo que está para além do quotidiano.
Fazer o exercício sagrado da peregrinação proclama íntima e socialmente a condição de caminhante sobre a terra, na dureza e nas alegrias da vida. O peregrino declara-se insatisfeito com o já realizado e deseja subir mais em humanidade e na vida do espírito. Manifesta a sua tendência inata de ser para os outros e para “um novo céu e uma nova terra”. Na peregrinação vê oportunidade para a descoberta, para a purificação interior, para a catequese do coração, sob o signo do gozo e da paz interior. Nela colmata uma necessidade da alma, enquanto libertadora iniciação ao itinerário da alma para Deus. Quando um crente ou descrente sobe peregrino a um santuário, qual monte do perdão e da salvaçãouniversais, deseja voltar de lá mais identificado com o Mistério, representado simbolicamente por esse lugar sagrado. A peregrinação religiosa enriquece com uma experiência de Deus festiva e emotiva os limites da habitual visão do mundo. Até exprime a inevitável transitoriedade da vida e a relatividade das coisas com que lidamos diariamente. E subentende a intenção de não dar importância ao supérfluo e de se concentrar no essencial. Quem exercita a peregrinação entende que a vida é frágil e breve, sem tempo para fazer tudo, muito menos o mal, mas só o bom e o óptimo.
Pôr-se a caminho em peregrinação empenhada é expressão da fome de sentido transcendente, da busca de infinito que ofereça remédio ao humano radicalmente finito, embora por vezes não se note diferença entre romaria e peregrinação. Os que peregrinam esperando encontrar alguma coisa no caminho ou na meta podem hesitar quanto àquilo em que acreditam e podem suspeitar da doutrina da sua religião ou da não-religião. Mas crêem que a peregrinação é uma viagem a fazer. Podem não ser muito atraídos por um ofício religioso, mas sentem-se bem quando, chegados à meta do santuário, veneram a imagem sagrada ou a cruz que os pôs a caminho. Há em todo o ser humano uma ânsia de caminhante, expressão de esperança implícita ou explícita.
Quem vai em peregrinação é um potencial dependente de outros: precisa de amparo, orientação, alimentação, estímulo para continuar a caminhar; frequentemente é posto diante do novo, de incertezas face ao desconhecido das etapas seguintes, de opções fundamentais a fazer diante de uma encruzilhada. A companhia de outros ajuda a gerir as instabilidades e os altos e baixos próprios de uma peregrinação. Caminhar com outros faz com que volte a casa outro.