Frei João Costa, OCD
- Este texto é sobre silêncio. Para dizer a verdade ao leitor direi que bem não sei o que seja o silêncio, daí que aqui mais arrisque a falar sobre o que menos saiba. Como, porém, vivo entre a brisa de Elias e o engenho de Gedeão, algo direi, sobretudo, depois que o silêncio me atingiu como um tição aceso numa tarde quente de agosto, no alto de um monte seco.
Entre um bailarico de cabelo ao vento e o ímpeto de fornalha ardente anda, pois, este texto porque, creio, por ambas balizas anda em mim o silêncio. - Um pouco além da Senhora de Agosto deste vinte-vinte e cinco fui a Viana presidir às exéquias do Senhor Araújo. Convenhamos que eu sei que ninguém sabe quem o Senhor Araújo foi. Afinal, ele não descobriu terras, não foi empreendedor, não apareceu na televisão, não deu pontapés na bola, não foi citado em nenhum podcast famoso, não se notabilizou em nada, não sobressaía, não era essencial numa procissão, numa banda, não era macaco de nenhuma claque – era um Zé Normal, como muitos que por aí existem, com a vantagem do seu nome ser mesmo José. Ah, e também não foi ladrão, nem homicida, nem criminoso algum que lhe valesse fugaz aparição na CMtv. Foi apenas um desses homens pequeninos como o cimento que se junta à areia e assim ajuda, há séculos, a colar as pedras de edifício famoso – e como tal, não se via, não se dava por ele, não sobressaía. E se tinha defeitos – e parece que tinha – foram com ele para a cova. Sim, tinha defeitos e pelo menos uma virtude: não se punha nunca em bicos de pés. Essa virtude eu a aprecio cada vez mais, embora a reconheça em alguns outros – mas, sobretudo, entre falecidos, que aqui e agora não dá para falar. Devo, pois, reconhecer que a mais afoita razão que mais me levou a Viana nesse dia até foi a de sempre lhe ter visto o tal bico dos pés na horizontal (e nunca na vertical); sim, tal foi a razão mor por, naquela manhã, eu ter voado de Braga a Viana em contrarrelógio!
Como alguns saberão aquele era um dia das festas da cidade – o do Cortejo da Mordomia (?) –, pelo que dos jardins às paredes tudo bombava e me gritava festa e chieira como só à beira da boca do Lima se vive e existe. Para o ano, vão por lá e testemunhem.
Por essa razão, cheguei em cima da hora à igreja de São Francisco, onde repousava o féretro, visto que o rendilhado labiríntico de carros não fora fácil de tornear e vencer. Lá dentro, o clássico actual: pouca gente; ou não estivera a Praça da República a latejar ao ritmo do despique de bombos entre os de Santa Maria de Jazente e os de São Sebastião de Darque. Sim, enquanto em baixo aqueles retaliavam entre si, cá em cima, nas faldas da encosta de Santa Luzia, o Caló chorava, a esposa chorava, e a neta Maria chorava. E assim foi que naquela hora de paradoxo de líquidos – uns moviam-se batidos a cerveja e a carrascão, outros, nós, a lágrimas salgadas – nos ajuntámos para lhas enxugar; nós, quer dizer: eu, os compadres ou parceiros e um pequenino e solidário grupinho de amigos. Como é de lei entre católicos, celebrámos a Eucaristia, ouvindo, primeiro, a Palavra cuja esperança não engana e actualizando, depois, o mistério da Paixão e Morte e Ressurreição do Senhor, penhor da vida e saúde de todos nós. Lembro que, falando diante dos restos mortais do Senhor Araújo, recordei tê-lo conhecido, sobretudo no último ano de vida, durante uma nesga de tempo – tanto quanto durou a fumaça de um calado meio cigarro que ele antecipadamente sacara do bolso da lapela. Podem retorquir-me que isso não dá para nada conhecer, mas cá para mim dá porque para bom entendedor meio mata-ratos basta!
(Ah, e devo ainda dizer que entre os que compunham aquela pequenina Betânia mais lágrimas havia, porque entre nós só se pode estar ok se tu estiveres ok. E a pequenininha família não estava, óbvio.)
Saídos da mesa eucarística impunha-se reconfortarmos o corpo noutra mesa. Fomos, por isso, para fora de Viana, porque festa e lágrimas não condizem. Lá chegados, à hora de botar os pés debaixo da mesa, não o pudemos fazer porque outros, antes de nós se tinham apropriado, e bem, do pequenino lugar. Surpreendidos, mas não aborrecidos, debandamos para o monte como as cabras, porque em certo lugar – a meia hora de distância – haveria uma locanda que nos receberia. Recebeu. - E a seguir falo de silêncio.
(Não posso prosseguir sem dizer dos variegados sabores regionais que nos saciaram, nem ocultar os que depois nos re-temperaram o espírito, pois que também visitámos o mosteiro de São João d’Arga e, um pouco mais além, entre penhascos, galinhas e giestas, a exposição Arte na Leira. Foi algures por ali que me sucedeu um silêncio que não sei explicar – se é que algum existe que seja explicável.)
No carro em que viajava ia um rebuliço sustentado pela presença de quatro irrequietos adolescentes e seus Iphones. Dele saindo algures, no alto do monte, ao abrir a porta, sobressaltei-me e exclamei (sendo certo ao certo não saber se alguém me escuitou!):
– Olhem o silêncio!
Talvez, leitor, leitora, já tenhas sofrido o impacto do abrir dum forno depois da cozedura do pão: acometendo-nos e torneando-nos, para fora sai uma baforada deliciosa no seu bafo e calorosa no seu envolvente abraço. Tal foi o que senti naquele milissegundo em que abri a porta do carro: diante de mim e à minha volta, vi o majestoso silêncio quente no alto daquele monte sagrado!
Como disse, não sei se o silêncio é explicável – talvez não; e, desse que ali senti e vi, nada sei, ou pouco mais sei dizer. Embora diga ou sinta que uma coisa que assim tanto nos impacta, habita e anda por ali, vadeando-nos os passos, até que nos atinja e nos volva renovados e diferentes, como se a vivêramos docemente, intensamente e durante muito tempo! Nada sei dizer bem, mas direi que não haveria por lá, naquela hora, passarinho que pipilasse ou cobra que rastejasse; e, por já não poder crescer, sossegada, a erva seca morava por ali caladamente efémera. E lá em baixo, num baixio lento e cansado, um lânguido riachuelo cabriolava de pedrinha em pedrinha, mas por quase todo ele ser bebido por um par de libelinhas, não fazia ruído algum ao nosso olhar. Oh que silêncio abençoado! Silêncio fresco! Silêncio quente! Silêncio suave! Suave silêncio!
(Veio, então, um homem que nos tirou uma foto a todos junto a um cruzeiro do lugar; perguntei-lhe de onde fora e disse-nos que do ruído de Viana era e dali fugira a sete pés, buscando refresco no alto monte. Ah, caramba, pensei, afinal não sou só eu o atingido em cada poro pelas frechas do silêncio!)
Ah, o silêncio, o silêncio, aquele silêncio; aquele silêncio, que só de recordá-lo, me sinto agora mesmo, conjugando um mergulho em refrescante poço de límpidas águas frias. Não é que na hora estivesse cansado de falar, que me fugissem as palavras ou elas se se negassem a subir-me à boca; não é que eu quisesse ausentar-me dali ou me recusasse a rezar na Capela do Baptizador. Não. Não era que evitasse ouvir estórias de «quando aqui, nestes quartéis, fomos felizes aos 17 anos!» ou os sonhos de encontrar o Papa na JMJ de Seul em 2025. Não era nada disso, porque aquele silêncio era espaço de comunhão de vida, de história e de sonho.
Era silêncio, era um andar entre o adágio e o alegro, como quem espera acompanhado, sem racionalizar nem saber o que houvera depois. Não era ilusão, mas um encontro, um andamento de amigos, um acolhimento de quem, ciciando, fala e sabe que não se pode falar tudo nem tudo ouvir, que não se consegue sentir tudo, que não se ouvirá nunca tudo e que, em passado momentos, antes do pôr do sol, reconstruído ainda que amachucado, dali sairia para a balbúrdia e o ruído da noite do mundo.
Naquela tarde, como diante da bocarra dum forno, o silêncio atingiu-me o peito e envolveu-me e inundou-me em seu calor purificador. Era como réstia da fragância da origem e feriu-me como seta amiga, atravessando a cota de cruzado em campo de batalha. E depois, reencontrado e ajustado, apesar de suavemente lancetado, agraciado dali saí e mais amigo, e bem mais sem pressas, renotando que para lá daquele limiar, a vida continuava a sobreviver, a precisar da fala de amigos, do Amigo, porque todo o homem, como as plantas, onde melhor se revê é num jardim. - A baixa velocidade regressei só no carro só que me levara. Abri ambas as janelas porque o calor do silêncio me levantava em chamas e minhas roupas rescendiam a intenso perfume. Quase duvidando, olhei-me ao espelho e reconheci-me. E houve ainda de reolhar-me por me haver lembrado de um conto que eu sabia existir (e fui rebuscar), porque me achava como ali o sábio narrador narra.
Na Hora de Vésperas fiz coro com os meus frades. E na de Completas também. E pelo meio rimos à mesa, enquanto ceávamos um refrescante tomate coração de boi cada um. E se querem saber, fomos falando dos crimes e da profunda chaga dos incêndios nacionais e de resultados de futebol, porque eu aprendi com uma Santa que quando mais santos, mais conversáveis, até porque os outros podem ser mais santos que nós!
E aqui termino, deixando o conto sem aumentar um ponto:
Estando um monge em matinas com os outros religiosos do seu mosteiro, quando chegaram aquilo do salmo, onde se diz que «mil anos à vista de Deus são como o dia de ontem, que já passou», admirou-se grandemente, e começou a imaginar como aquilo podia ser. Acabadas as matinas, ficou em oração, como tinha de costume: e pediu afetuosamente a Nosso Senhor se servisse de lhe dar inteligência daquele verso. Apareceu-lhe ali, no coro, um passarinho, que cantando suavissimamente, andava diante dele dando voltas de uma para a outra parte, e deste modo o foi levando pouco a pouco até um bosque que estava junto do mosteiro, e ali fez seu assento sobre uma árvore; e o servo de Deus se pôs debaixo dela a ouvir. Dali a um breve intervalo (conforme o monge julgava) tomou o voo e desapareceu com grande mágoa do servo de Deus, o qual dizia mui sentido:
– «Ó passarinho da minha alma, para onde te fostes tão depressa?»
E esperou. Como viu que não tornava, recolheu-se para o mosteiro, parecendo-lhe que aquela mesma madrugada depois de matinas tinha saído ele. Chegando ao convento, achou tapada a porta, que de antes costumava servir, e aberta outra de novo em outra parte. Perguntou-lhe o porteiro quem era, e a quem buscava. Respondeu-lhe:
– Eu sou o sacristão, que poucas horas há que saí de casa, e agora torno, e tudo acho mudado.
Perguntado também pelos nomes do abade e do prior, e procurador, ele lhos nomeou, admirando-se muito de que não o deixasse entrar no convento, e de que mostrava não se lembrar daqueles nomes. Disse-lhe que o levasse ao abade: e posto em sua presença, não se conheceram um ao outro; nem o monge sabia que dissesse, ou fizesse, mais que estar confuso e maravilhado de tão grande novidade. O abade então, iluminado por Deus, mandou vir os anais e histórias da Ordem: onde, buscando, e achando os nomes que o monge apontava, se veio a averiguar com toda a clareza que eram passados mais de trezentos anos desde que o monge saíra do mosteiro até que tornara para ele. Então, este contou o que lhe havia sucedido, e os religiosos o aceitaram como a irmão seu do mesmo hábito. E ele, considerado na grandeza dos bens eternos, e louvando a Deus por tão grande maravilha, pediu os sacramentos, e brevemente passou desta vida com grande paz no Senhor. - Bem-aventurado quem a inesperada seta do perfume do silêncio atinge.