Frei João Costa, OCD

Sempre me estremeceram as cenas do estilo que a seguir contarei. Primeiro, porém, é precisão que vos conte que este ano a imagem da Senhora do Carmo ficou todo o seu mês num trono que lhe preparáramos, à entrada do presbitério. Pusemos-lhe flores e lamparinas, e os devotos trouxeram-lhe flores, orações, novenas e pedidos e, por estranho que pareça, um pequenino canivetezinho, um alfinete de ama, grande, por sinal, e um pin das Guias de Portugal. As flores eu compreendo, e que, dia em pós dia, volvessem a trazer mais, também, e velas também, novenas e orações e lágrimas e pedidos, óbvio que sim. Mas já não encontrei explicação para lhe terem trazido o canivetezinho, o alfinete e o pin.

Outro esclarecimento: nada me atreveria a contar se não tivesse claramente visto o que a seguir descreverei. Sim, uma rosa seria apenas mais uma rosa, se eu a não tivesse visto chegar e ao modo como chegou.

A coisa sucedeu no dia 5 de agosto, memória litúrgica da dedicação da Basílica de Santa Maria Maior. Sim, notaram bem, quase uma semana depois do fim do mês do Carmo, a imagem da Senhora do Lugar permanecia plantada no presbitério, não por inércia ou esquecimento, mas por algo me bater por dentro, impedindo-me de a retirar dali. De facto, sempre que pensava em retirá-la, terna mão mo empecia.

Estava eu, pois, posto em ledo silêncio, na igreja, dispondo os livros para o dia da Transfiguração, e eis que o olhar se me alevantou, logo que algo me disse: levanta os olhos! Eu alevantei e vi subir pelo lusco-fusco adentro um homem nem baixo nem alto, algo para o magro, de barba rebelde e agreste, já velho, cambado e gasto. No andar percebi solenidade, nos pés umas botas pesadas rematando debotado fato, passageado aqui e ali. Estacou a três metros da imagem e, num embaraço que lhe atava a língua, apontou com o olhar para a Senhora. Embaraçado me vi eu também, sem me inteirar se por causa de alheio embaraço, ou se por ter visto que ele vira que o espreitara subindo igreja acima.

(Uma coisa garanto: continua a ser verdade que quem vê caras não vê corações!)

Estávamos, pois, reconheço, dois homens embaraçados, um diante do outro, e os dois diante da Mulher. Foi então que inteira luz se abriu sobre a singela rosa branca que ele portava na mão. Percebi aí que ele a queria deixar no escasso trono da Senhora. Ah, aí virei Marta solícita, que sim, que sim, por aqui e tal, desta maneira ou como você quiser, dizia-lhe, enquanto afastava uma lamparina para escancarar espaço. E o homem nada, nada dizia. Nada se movia. Embaraçado ou não, nada disse.

Tomei-lhe a rosa e coloquei-a aos pés da Senhora. Mirei-o, e ele assentiu. E pensei: se bem não está, melhor não sei, e a Senhora nos aceite assim. E como melhor não sei, é assim que fica. E assim ficou.

Acreditai: como naquela hora não sabia como deslaçar o impasse, aberta lhe estendi a mão direita e ele a sua. Apertamo-nos tanto quanto dois corações se podem afagar. Era a sua calosa, estriada e mais forte que a minha. Os olhos mirei-lhos mal, porque sobre eles chuva grossa descia. Agradeci-lhe, sim, o terno gesto, com um singelo obrigado. Ele virou costas e ajoelhou no terceiro ou quarto banco em frente da Mulher, e eu naquele que mais ilumina o olhar de São José, que é donde melhor eu lhe faço mira aos olhos.

Recolhido ali aguardei pelo meu companheiro de Vésperas. É justo que diga não recordar o tempo da demora; sei sim, que a vespertina récita foi das mais breves, por ser aquela a tarde com os salmos mais pequeninos. Rezámos tudo sem mudar um til ou uma vírgula das rúbricas, ou não fosse canonista o meu sócio.

Como quem preside, é quem dá a bênção, ao dá-la, virei-me e vi o homem a meu lado:

– O senhor é padre, questionou-me a medo?

– Sou frei.

– E isso que é?! Pensei que por rezar dessa maneira… mas não é padre?

– Sim, descanse; também sou padre!

– Ah, bem me queria parecer!

– Sim, amigo, não se enganou, não.

– Então, confesse-me!

– Confessá-lo?! Estou aqui descalço, de calções e t-shirt… O senhor acredita que sou padre?

– É qu’eu precisava de ser confessado.

– Mas, e se eu não sou padre?!

– Deve ser: para rezar dessa maneira…

Confessei-o. Soube-lhe o nome e a longa travessia por sofridos mares nunca dantes navegados; ou quase. – Há cada história, João, dizia-me eu de mim para mim, enquanto o ouvia. Há cada sofrido monumento, meu Deus!

(Como é sabido, não contarei nada do que ali me foi dito; mas do de fora sim, ainda que licença não tenha tirado.)

Tem oitenta e nove anos, é emigrante sem bandeira, ou andarilho impenitente, não soube bem; mas, de cando em bêz bira a quilha p’ra Portugal, por ter cá berço de vimes colhidos nas bordas de vetusto arroiozinho, escorrendo, algures, pelo profundo verde Minho a baixo; e ama a Estrela do mar.

– Eu tinha de cá bir, senhor padre, eu tinha de cá bir, insistia-me. Eu tinha de cá boltar, ómessa. Depois desta pedemia, antes q’o barco se m’afunde, eu tinha de cá boltar. E boltei. E Ela estaba aqui, esperaba-me aqui, aqui nesta igreija, nesta tarde, para me abençoar.

E, de chapéu desleixado na mão, debitando sem parar:

– Conhece a canção colomba nera? Aprendi-a num beilho cargueiro, que não parava de ringer – há navios assim, sabe? –, durante uma tempestade, no alto mar.

Roncou-me uns versos num dialecto que não reconheci.

Não conhecia tal canção, lhe confirmei.

– Saiba, senhor padre, com todo o respeito lho digo, eu nasci com uma colomba nera no coração. Esta foi a minha condição: cando ao mundo cheguei, já trazia comigo uma colomba nera, bem mais beilha do que eu. É; eu que sou antigo, trago há muntos séculos uma negra colomba no coração. Nunca a assustei porque até tenho tido mais sorte q’outros, onde só medram cardos e lacraus. Mas no meu, ao nascer, vinha aninhada uma colomba nera. Tenho sorte; apesar de tudo, para passar o que eu passei, até sou home de sorte. Embora fosse moléstia, nunca soçobrei totalmente.

– Alguma bêz ajoilhei diante da negrura, mas nunca inteiramente vencido. Também nunca pedi a Deus que ma ‘spantasse ou q’a botasse borda fora. É verdade que, com’a outros, nunca os lacraus me envenenaram. Mas ela ficou-me aqui, aqui, note bem, ela ficou-me aqui, aqui, noite e dia.

E apontava para o batente do coração.

– Ela restou-me aqui, negra, negra, da cor da noite, negra, com’ó mar profundo! Sabe, só tive dias da cor da noite, negros, sem luz, sem dia. É bem berdade, na vida não ‘xprimentei mais q’o sabor do pão ‘scuro. O senhor não pode imaginar; nem sei s’alguém poderá ‘xperimentar o mesmo q’eu: tudo negro, negro! Tudo negro em bolta; que coisa, senhor padre!… Até o pão prá boca era negro. As lágrimas, negras; e o sangue…

– Olhe q’eu cego num sou, mas também num conheci outra cor na minha bida! Mas há em mim uma coisa do tamanho duma sementinha: por maor que fosse a noite nunca deixei que m’arrebatasse, porque eu cria que além, mais além, às vezes muito além, pr’álém do olhar, ou por cimas das nubens negras, eu sentia que há uma Estrela do mar que nos guia. Ao menos, a mim, sim, guia.

– E então, neste berão eu bim à terra. Falaba-se tanto de secura que eu bim ber s’o meu bolhão d’oiro secaria. Mas não. Tinha limo, era um fiozinho que acaijo num cantaba, mas ainda corria. E então, senhor padre, abanquei-me. Quedei-me ali sem dar de mim nem ber as horas passar. Sabe com’é: a jente não tem quem no‘spere, por isso é igual que chegue a qual hora chegue, que todas são neras. E bota que num bota, por ali fiquei. O dia tinha-se desapertado quente e a tarde ia muito pró abafado. Até que’s’estaba bem ali, compriende? Além disso, tirando as bordas do ribeirico já nada em bolta ‘staba verde: ‘taba tudo seco e amarelado com’a doença. Num é qu’em bolta se bisse fogo, mas par’cia q’o mundo ardia por todo o lado, lá p’los altos. E eu ali, a ber, a ber, a ber aquele bolhãozinho a nascer, a nascer, a nascer, a correr. Que mistério é a bida! O senhor beija bem: era eu e ele, à conversa. Num sei se me’xplico, porque ele corria na mesma, pelas leiras a baixo, pelos montes a baixo, pelo caminho dele, bem entendido, mas nós ‘stábamos ali, os dois, cada um a chegar-se à fala, à conversa com o oitro.

(Por momentos, parou para retomar o fôlego, ou a coragem, ou ambos.)

– Bota daí, o senhor padre julgará que sou tolo. Mas num sou. E num bebi, que’me deixei disso há munto; ou, vai daí, i num intende nada do que le digo; mas bem l’agradeço que ‘steija aqui pra m’oubir, porqu’eu preciso muito de ser ouvisto, sabe? Então ‘staba eu a falar q’o córregozinho, que naquele lugar é coisa miudada…

Sabe, um ribeirinho num fala; mas também há falar e falar. E s’a gente se dispor a oubir, até que fala. E a gente pode falar qu’ele oube-nos. Mas Vossemecê num s’estranhe, q’a cousa é mais ou menos assim, como le sigo dizendo. Segue-se: estábamos os dois assim, e a tarde, quente com’um braseiro, ia pra mais de meio. E então num é que beio uma palomica mansa beber ali no arroiozinho? O senhor padre até que pode ‘stranhar, mas eu digo-le mais, e até gostaria de saber a sua opinião: pois fiqu’a saber qu’a palomica era blanca! Blanca, senhor padre, com’ás da paz! Beija se m’intende, senhor padre: eu nunca tinha bisto uma palomica blanca na minha vida; e ó se sou velho! Em mim sempre amandou a colomba nera; beija bem o senhor se m’intende, percebe?

(Que sim, assenti.)

– E então, explique-me agora: o que quer dizer aquela palomica blanca, qu’eu nunca bi e só bi naquela tarde?

– Não sei, senhor; confessei, humilde. Será que…

– Olhe, foi aí que m’alembrei da Sinhora do Carmo, a ‘Strela do mar e cura do mundo. E disse: Albino, tens d’ir a Braga, à Sinhora do Carmo, lebar-lhe uma rosa branca! Merquei uma na bila, e aqui ‘stou eu, plantado diante de si! E agora, diga-me: o senhor padre quando acha que bou morrer?

Por dentro, o coração desempertigou-se-me num pinote ao revés; atarantado fui à procura de palavras e, sem mais desembrulhar, atirei-lhe as primeiras que encontrei:

– Olhe, senhor Albino, novo é que o senhor já não é; e cada um morre na sua vez. Mas uma coisa lhe garanto: por agora, o senhor não vai ao fundo! Ainda tem muito pra navegar! E, já agora: alguma vez reparou que depois do navio passar, o caminho do mar volta a fechar e ninguém sabe dizer por onde ele é ou era? Pois é, ou muito me engano, ou o senhor é como um navio: passou e vai passando, e passará, pelos caminhos deste mundo, sem o ferir nem o dividir! E isso é muito agradável a Deus! Vá descansado para casa, fale à vontade com o seu córregozinho tudo o que tiver de lhe falar, porque maluco Você não é! Nem se assuste com a colomba nera, que ela é irmã da palomica da paz! E a Estrela do mar o guie!

– Ó Senhor padre, pois essa é qu’é essa! O milagre da ‘Strela do mar é mesmo esse: agora, desde há dias, a única colomba que trago em mim é palomica blanca, sabia?­

E, marujando-se-lhe os olhos, marujou-me os meus.