Armindo Vaz, OCD
A clave de leitura que procura o primeiro sentido para as notas da pauta do Cântico dos Cânticos encontra a sua música mais melodiosa e cativante nos tons e acordes sobre o humano. É a leitura que, no jogo ‘às escondidas’ de ecos e respostas entre o amado e a amada, torna o poema fascinante, porque intui e descobre na sua linguagem o dinamismo da densa e plural experiência humana que é o amor, apresentado não em si mesmo mas em perspectiva, subjectiva, dele e dela: “A sua boca é só doçura e todo ele é delicioso” – diz ela (5,16). – “A tua boca é vinho generoso” – responde ele no mesmo tom (7,10). O Cântico é o sim ao mistério da vida, a declamação da vitória do amor sobre a sua deturpação e o seu aviltamento. Declama o amor fiel e íntegro, que faz escutar a voz límpida da plenitude de gozo, a profunda e universal experiência humana. Situa-se despretensiosamente antes de qualquer princípio ético, como encontro gozoso de pessoas, livre de perversões, de legalismo e de condicionalismos morais, sociais ou culturais. Coloca-se antes do religioso e do moral. É uma realidade viva, desinteressada e gratuita: não procura justificação fora de si próprio. Vale por aquilo que é. Só ama, sem se preocupar para que ama. Nem precisa de se preocupar, porque o amar sustenta-se e justifica-se a si próprio, sem mais. Até o sexual fica desmistificado pelo Cântico, remetido de maneira velada mas eficaz para a vivência do humano em profundidade, sem mais. Sim, diga-se com convicção: aquele que é o mais elevado elogio ao amor no Antigo Testamento é erótico. Para se convencer, bastaria deliciar-se com o amado a explorar as cavidades recônditas do corpo da amada: “O teu umbigo é uma taça redonda, / transbordante de vinho fino. / O teu ventre é monte de trigo, / todo adornado de açucenas. / Os teus seios são dois filhotes / gémeos de gazela” (7,3-4). É a este tom erótico que se refere S. Teresa ao recordar “algumas palavras neste Cântico”: “tenho ouvido algumas pessoas dizer que até fugiam de as ouvir” (Conceitos do amor de Deus, 1,3).
Erótico, sim. Mas o Cântico não é manipulação de sentimentos frívolos, nem procura de prazer superficial. Nem é fogo de palha que aquece por um instante, para logo deixar como sobras a tristeza de cinzas mortas. Lido na transparência de um coração puro, não deixa transparecer nada de obsceno, trivial, licencioso ou carnal. Nem descamba minimamente para a banalização do amor, nem o deixa vulgarizar. Até põe em alto-relevo a linguagem e a presença do corpo humano nu: amada e amado fazem do corpo do outro o mapa para ousarem a aventura do amor: “Os seus olhos são como pombas à beira do arroio, / que se banham em leite, / pousadas junto ao ribeiro…; / os seus lábios são lírios…; / os seus braços são ceptros de ouro” (5,12-14). É o amor a nu. Mas também o tema da nudez remete para a verdade de que o melhor amor não é teoria abstracta sem corpo, mas vivência e canto enamorado da existência num corpo: “Ao olfacto são agradáveis os teus perfumes” (1,3). “Deixa-me ver o teu rosto, / deixa-me ouvir a tua voz, / pois a tua voz é doce / e o teu rosto, encantador” (2,14). “Como és bela, minha amada! / Como estás linda! Teus olhos são pombas / por detrás do teu véu. / O teu cabelo é como um rebanho de cabras… / Os teus dentes são um rebanho de ovelhas… Como fita escarlate são teus lábios… As tuas faces são metades de romã por detrás do teu véu; o teu pescoço é como a torre de David… Os teus lábios destilam doçura, ó minha noiva; / há mel e leite sob a tua língua” (4,1-11).
Para o amor, é mais nobre valorizar o corpo do que negá-lo. Se despreza o corpo, despreza-se a si mesmo. O amor faz do corpo uma melodia tocada com o olhar acariciador, onde o tocar empresta verdade ao amor. O corpo é encarnação e visibilidade do amor, não o deixando volatilizar: “Mais forte do que todos os odores / é a fragrância dos teus perfumes” – diz o amado (4,10). Com essa linguagem, o Cântico pode sugerir que à mesa do amor total, que cura a fraqueza, o enjoo e a doença, só se pode sentar quem esteja disposto a matar a fome e a sede com a melhor de todas as iguarias, como um príncipe.
Por isso, o Cântico respira ar de festa, a festa da alegria contagiante, sentida e vivida pelos dois enamorados, capturados um pelo outro: “comei, amigos, bebei e inebriai-vos, queridos” (5,1). O amor autêntico não tem onde esconder-se. A alegria e a felicidade são sinais indesmentíveis da autenticidade da vida. A intimidade, característica do amor, mesmo que seja inviolável e só viva no amor, conjuga-se com a alegria do coração partilhada: “As donzelas felicitam-na ao vê-la; / as rainhas e as suas damas elogiam-na” (6,9). O verdadeiro amor não é possessivo. É um êxtase que não devora nem absorve o outro mas respeita a alteridade do seu ser irrepetível, na plenitude da entrega a ele: “eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim” (6,3 e 2,16). Para o poeta do Cântico, o amor é imbatível: “forte como a morte é o amor” (Ct 8,6). E, talvez porque “tudo desculpa, tudo acredita, tudo espera, tudo suporta, o amor não acaba nunca” (1Cor 13,7-8). É o triunfo sobre a morte? É a vitória sobre o tempo e sobre a mediocridade! É o melhor do ser e do agir humanos. [continuará]